Fiquei afásica

 Lou Kleppa

Perdi todas as palavras

De um dia – pro outro

Não uso mais “bom dia”, “obrigado”, “tchau”

 

Entendo o que me dizem

Mas se tento – falar

Só sai TISSA TISSA TISSA TÁ

Fiquei afásica

 

Perdi o controle da escolha

Só me resta – o gesto

Não uso mais “tamo junto”, “eu te amo”, “até”

 

O som que sai não é sequer

uma palavra – dessa língua

Só sai TISSA TISSA TISSA TÁ

Fiquei afásica

 

Depois do derrame

Minha vida pa-ra-li-sou

Pa-ciente, pa-ssiva, sujeito sem - ação

 

Quero pra voltar pra mim

Inventar nova comunicação

Por enquanto só sai TISSA TISSA TISSA TÁ

Fiquei afásica

 

Você já tentou passar um dia inteiro sem dizer qualquer palavra? A não ser que você esteja socialmente isolado ou tenha feito voto de silêncio, se você conseguir desenvolver suas atividades rotineiras sem dizer uma palavra ao longo de 24h, então isso foi uma opção (dependendo das condições do isolamento social), não uma imposição. Agora imagine uma pessoa que, da noite pro dia, não é capaz de usar as palavras da sua língua materna.

Para preservar a identidade da pessoa afásica, chamaremos de Liliane uma moça que, aos 33 anos de idade, sofreu um AVC (derrame). Este acidente cerebral (episódio neurológico) deixou duas sequelas marcantes na Liliane: os membros do lado direito do corpo perderam força e mobilidade e sua linguagem foi afetada.

A perna direita arrastava na caminhada e a mão direita não segurava mais objetos (escrever com caneta ou lápis não era mais possível), mas isso não a impediu de digitar no celular. Perceba que Liliane conseguiu se adaptar a uma limitação do seu corpo digitando com a mão esquerda no celular.

 Sua linguagem falada se reduziu a um automatismo: espontaneamente (quando não lia ou repetia palavras), ela só produzia TISSA (TÁ). Chegaram até a chamá-la de Ticiane, tão característico tinha virado o TISSA dela. “Oi, tudo bem?” “TISSA.” “Aceita mais uma fatia de bolo?” “TISSA”. Liliane procurou tratamento fonoaudiológico, mas seu problema não era articulatório. A dificuldade não era mecânica, era a linguagem dela que estava afetada, não apenas a sua fala.

Procurou um grupo de extensão universitária e foi acolhida num grupo interdisciplinar em que atuavam fonoterapeutas, terapeutas ocupacionais e linguistas. Lá ela conheceu pessoas com as mais diversas afasias e seus acompanhantes. Ali no grupo, ela entendeu que a afasia é uma decorrência de lesão cerebral. E como cada pessoa tem um cérebro diferente dos outros e uma história própria na linguagem, ela entendeu que cada afásico era um afásico.

Ela só dizia TISSA, que não é uma palavra do português. O outro ali falava num tempo e ritmo normal, mas TUDO que ele dizia parecia outra língua. Ele era tranquilão, falava pelos cotovelos, a esposa dele é que procurava respostas no grupo. O outro lá falava tudo normal, menos os nomes das pessoas e das coisas. Ele dizia o nome dele e do Roberto Carlos, mas nem adiantava dizer nome nenhum pra ele, porque ele não usava. A Dilma era “a mulher que manda”, o poço era “lá onde pega a água”. Não adiantava nem gritar DILMA ou POÇO, não adiantava repetir ou silabar. Ele continuava descrevendo tudo. Liliane foi entendendo aos poucos o que tinha lhe acontecido quando se comparava aos outros do grupo.

A coordenadora do grupo era linguista e conhecia casos como o dela. Quando a coordenadora dava a primeira sílaba de uma palavra pra Liliane, ela completava a palavra com dificuldade: “cer-?”... “TO”. Pra Liliane, foi importante perceber que ela era capaz de dizer outras coisas além de TISSA. Ela só precisava de primeiras sílabas emprestadas.

Como Liliane escrevia no celular, em 2013 foi desenvolvido um aplicativo que vertia o que ela escrevia no celular em som. Os efeitos terapêuticos do aplicativo estão descritos num estudo conduzido durante 6 meses por Bianca Pimentel e colaboradores, publicado em 2020 (referência abaixo).

A primeira consequência foi que, ao ouvir o sintetizador de voz, Liliane passou a abreviar menos a sua escrita, já que o sintetizador lia “vc” não como um acrônimo ou sigla, mas como dois sons seguidos. Liliane teve que se adaptar às limitações da inteligência artificial por trás do aplicativo.

Com o estímulo auditivo produzido pelo aplicativo, Liliane conseguiu inibir gradativamente o automatismo (TISSA). Ela digitava, o sintetizador falava e ela acompanhava. Aos poucos, Liliane foi voltando a ser autora da sua fala. O processo terapêutico infelizmente foi interrompido abruptamente com a morte da Liliane por complicações cardiovasculares. Afasia era um dos seus problemas de saúde.

Existem poucos grupos de afásicos gratuitos coordenados por linguistas em universidades no Brasil (temos notícia da UFSM que conta com o GIC – Grupo Interdisciplinar de Convivência, de que Liliane participou, da UNICAMP que conta com o CCA – Centro de Convivência de Afásicos e da UESB que conta com o ECOA – Espaço de Convivência entre Afásicos e Não Afásicos). 

Há casos de pessoas com afasia que acompanham o grupo por 10 anos, por exemplo. Voltar não só para a linguagem, mas para as atividades linguageiras e se sentir aceito na sociedade novamente demanda tempo e paciência. Acompanhar pessoas com afasia é acompanhar pessoas com diferentes históricos e soluções de adaptação à condição afásica.

 

 

PIMENTEL, Bianca Nunes; FEDOSSE, Elenir; CECHELLA, Claudio. Eficácia de um aplicativo virtual na terapia para afasia motora. Research, Society and Development n. 9, vol. 7, p. 1-24, 2020. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/3877

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